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Reedição testa permanência do estudo de Caio Prado Jr. OSCAR PILAGALLO, especial para a Folha O retrato do Brasil Colônia como sociedade voltada para o exterior nos é tão familiar que é como se tivesse sempre existido. O relançamento de “Formação do Brasil Contemporâneo”, de Caio Prado Jr., porém, corrige essa impressão: trata-se de uma concepção de 1942, quando o livro foi publicado pela primeira vez. O argumento central, “o sentido da colonização”, é que o Brasil estava destinado a fornecer gêneros tropicais à Europa. “A nossa economia se subordina inteiramente a esse fim”, escreve Caio Prado. Essa capacidade de criar narrativa a partir de uma lógica, e não de recortes cronológicos ou espaciais, levou a historiador Fernando Novais, em entrevista no livro, a considerar a obra “o primeiro corte epistemológico na historiografia brasileira”. Comunista, Caio Prado trabalhou com as ferramentas do materialismo histórico. Suas conclusões, no entanto, bateram de frente com a análise esquemática do Partido Comunista Brasileiro. Para o PCB, o Brasil teria tido um período feudal, cuja herança deveria ser combatida por uma revolução burguesa, que, com o tempo, abriria espaço para o socialismo. Para Caio Prado, tal feudalismo não passava de construção ideológica sem fundamento, pois a colônia era parte, isto sim, do sistema capitalista mercantil. Ao lado de “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, e de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, o livro de Caio Prado forma o tripé de interpretações do Brasil que ajudaram a moldar uma cara reconhecível do país. Como seus pares, porém, ele não paira acima de críticas. A menos importante é que o livro contém expressões racistas. Índios e negros são descritos como pertencentes a “raças inferiores”. Não convém, entretanto, privilegiar a chave de leitura politicamente correta. Apesar do mal-estar que provoca no leitor contemporâneo, como nota Bernardo Ricupero no posfácio, tal abordagem não era uma aberração sete décadas atrás, e julgá-la segundo valores atuais implica em anacronismo. Uma ressalva mais pertinente diz respeito ao fato de Caio Prado ter subdimensionado a importância do mercado interno. Como mostram estudos posteriores ao seu livro, apesar da escassez de moeda, um contingente de pequenos proprietários, artesãos e negros alforriados movimentava a economia. O relançamento das principais obras de Caio Prado testará a atualidade do autor, que é também fustigado pela ascensão da Nova História, tendência historiográfica que tem no marxismo seu maior alvo. Publicado no caderno “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo, em 3 de dezembro de 2011.

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A história interligada OSCAR PILAGALLO, especial para a Folha A ciência econômica produzida nas nações industrializadas penetrou no Brasil através da universidade e, transformada em doutrina, passou a ser aceita sem qualquer tentativa de confronto com a realidade. A denúncia desse esforço de mimetismo, formulada por Celso Furtado (1920-2004) há meio século, é ainda atual. A inibição mental a que ele se referia, responsável pela importação de fórmulas, continua presente no debate sobre protecionismo, neoliberalismo ou globalização. Se a lição não foi totalmente assimilada, a culpa não é de Furtado. Ele fez sua parte. Em “Formação Econômica do Brasil”, agora reeditado pela Companhia das Letras, buscou uma interpretação original do país. Com o aparato teórico do keynesianismo (que defende a intervenção do Estado para corrigir as imperfeições do mercado) e a experiência obtida na Cepal (que propugnava um programa de desenvolvimento para a América Latina), propôs uma ambiciosa releitura da história econômica do Brasil, dos primórdios da colonização à industrialização do século passado. O país que emerge das páginas de Furtado não é mais o dos ciclos econômicos estanques. Sem nunca deixar de ocupar uma posição secundária no cenário internacional, ele é mais complexo. A cana-de-açúcar, o ouro, a borracha, o café, os ciclos estão todos lá, mas não mais como realidades regionais isoladas: eles se inter-relacionam, respondem à conjuntura mundial e, sobretudo, projetam uma perspectiva que chega ao século 21. A economia de subsistência que se seguiu ao fim da empresa açucareira, por exemplo, ainda está na base de problemas econômicos e sociais do Nordeste. A história econômica do Brasil poderia ter sido bem diferente. Se o país esteve sempre a reboque das nações mais ricas, isso se deveu não apenas a características geográficas, históricas ou demográficas, mas a opções em momentos decisivos. É ilustrativa a comparação que Furtado faz entre Brasil e Estados Unidos. Na segunda metade do século 18, ambos os países receberam a influência do liberalismo de Adam Smith, que em 1776, mesmo ano da independência americana, publicou “A Riqueza das Nações”. Mas, a digeriram de forma diferente. Nos EUA, onde além dos pequenos agricultores havia os grandes comerciantes, as idéias de Smith foram defendidas por Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro do país. No Brasil, onde a elite era formada por grandes agricultores escravistas, tal tarefa coube a José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu, que influenciava a monarquia em assuntos econômicos. “Enquanto Hamilton se transforma em paladino da industrialização [...], Cairu crê supersticiosamente na mão invisível [do mercado]”, afirma Furtado. A comparação acentua uma diferença de atitude que ajudaria a determinar as trajetórias distintas do Brasil e dos EUA. De um lado, a interpretação de uma doutrina ao pé da letra; de outro, sua relativização. Na pátria de livre iniciativa, o liberalismo foi bom quando conveniente para o desenvolvimento. Caso contrário, foi temperado por medidas protecionistas e estímulos à indústria. Na história de Celso Furtado, nem sempre o Brasil fez o papel de ingênuo. Nos anos 30, superou a crise iniciada em 1929 mais rapidamente que os países ricos, ao decidir financiar a queima dos estoques de café, então o principal motor da economia. “O valor do produto que se destruía era muito inferior ao montante da renda que se criava”, escreve Furtado, identificando aí um embrionário esquema keynesiano. O economista, no entanto, não tinha a menor ilusão. Não perdia de vista que tal política era apenas um subproduto da defesa dos interesses cafeeiros. Além disso, utilizando-se de ferramentas marxistas, Furtado, que não era marxista, introduziu o conceito de socialização dos prejuízos. “O problema consistia menos em saber o que fazer com o café do que em decidir quem pagaria pela conta.” Com a desvalorização da moeda em decorrência da crise, o grosso das perdas foi transferido para a coletividade, através da alta dos preços das importações. Ainda assim, o saldo foi positivo. “A política de defesa do setor cafeeiro nos anos da grande depressão concretiza-se num verdadeiro programa de fomento da renda nacional. Praticou-se no Brasil, inconscientemente, uma política anticíclica de maior amplitude que a que se tenha sequer preconizado em qualquer dos países industrializados.” O leitor com alguma familiaridade com a história econômica do Brasil terá a impressão de já ter lido em outro lugar as grandes sínteses de “Formação Econômica do Brasil”. E provavelmente leu mesmo, porque elas estão espalhadas em livros, acadêmicos e de divulgação, e incorporadas ao repertório contemporâneo. Escrito com intenção introdutória, o livro foi muito além da proposta inicial, mas manteve certa vocação didática. A análise, apresentada em capítulos curtos, é acessível ao leigo, embora pressuponha o conhecimento dos fatos históricos e, na parte sobre a industrialização, o domínio de alguns conceitos-chave. Comparado às grandes obras de formação do pensamento brasileiro, o clássico de Celso Furtado não tem a mesma força estilística de “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, ou de “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. O que prende o leitor é o poder da argumentação. Publicado no caderno “Mais!”, da Folha de S.Paulo, em 1º de abril de 2007.

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Livro aponta lacunas de Picketty, mas é um elogio à relevância de sua obra Oscar Pilagallo “Depois de Piketty” é um elogio, ainda que pelo avesso, a “O capital no século XXI”, livro que, há dez anos, catapultou seu autor, o jovem e desconhecido francês Thomas Piketty, à posição de celebridade mundial, condição rara para um economista. O livro recém-lançado é composto por artigos de duas dúzias de economistas que, reconhecendo méritos na obra, se debruçam sobre suas lacunas, apontam deficiências de pesquisa e oferecem contrapontos. As eventuais reverências vêm acompanhadas de ressalvas. Trata-se de elogio na medida em que, para um intelectual, nada é mais recompensador do que testemunhar a relevância e a atualidade de suas ideias, o que os autores julgam ser o caso, ou elas nem mereceriam sua atenção. A tese original de Piketty, estruturada com apoio de pesquisa histórica focada nos países ocidentais mais industrializados, é que se caminha para uma desigualdade social cada vez maior, uma vez que o rendimento do capital – na forma de lucros, dividendos, aluguéis, aplicações financeiras – tem sido maior do que o crescimento da economia, processo que provoca maior concentração da riqueza. Para ele, mantida essa tendência, a situação irá desaguar no maior acúmulo de fortunas em detrimento do bem-estar da maioria, com a mesma intensidade observada durante a Belle Époque, nas décadas da virada para o século 20, quando o capitalismo operava sem freios. Mais tarde, depois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a desigualdade cedeu por um hiato de trinta anos, até que crises econômicas sucessivas voltaram a acentuar a concentração da renda. Não há consenso em relação à sinistra projeção do estudioso. Economistas de corte liberal, mais otimistas, acreditam que o livre mercado é autocorretivo e dispõe de mecanismos que, a médio prazo, conduzem as diversas camadas sociais a rotas convergentes, o que tenderia a diminuir a desigualdade. Pura ilusão, rebate Piketty. Para o francês, a desigualdade só pode ser combatida por meio de uma política tributária progressiva, em que os que têm mais renda e bens paguem proporcionalmente mais impostos. O economista acredita que esse imposto progressivo sobre o capital teria impacto social comparável “a uma reforma agrária permanente” e contribuiria para “a reapropriação democrática do capitalismo”, como escreve no capítulo em que responde às críticas de seus pares. A proposta inclui um imposto substancial sobre heranças, de maneira a evitar a predominância de um capitalismo patrimonial, resistente à destruição criativa que acelera o crescimento da economia. Para contornar a possibilidade de que bilionários recorressem a paraísos fiscais, Piketty sugere a criação de uma taxa global, mesmo admitindo que um esquema tributário que ignorasse fronteiras não seria factível no horizonte atual. Com mais de 2 milhões de livros vendidos em três dezenas de idiomas, o autor best-seller costuma ser atacado pelos dois polos do espectro ideológico. Os liberais, que obtêm mais ressonância na mídia tradicional, fazem restrições ao intervencionismo do Estado que ele defende para moderar os excessos do capitalismo. À esquerda, é tachado de reformista por enfatizar a desigualdade como resultado da má distribuição da renda, e não decorrente do próprio sistema de produção capitalista, de acordo com a análise marxista. Em “Depois de Piketty”, no entanto, a maioria das críticas, mais do que confrontar o cerne do seu pensamento, visa aspectos não aprofundados na pesquisa em xeque. A historiadora Daina Ramey Berry faz reparos à abrangência do estudo do francês, ao notar que ele não considerou a riqueza gerada pelos escravos. Em outro artigo, o economista Christoph Lakner, do Banco Mundial, desaprova o fato de Piketty não ter contemplado também a desigualdade entre países, que estaria diminuindo desde o início deste século. Para citar mais um exemplo, Eric Nielsen, especialista em capital humano, chama a atenção para a importância da educação na mobilidade social, aspecto que teria escapado a Piketty. Em sua resposta, o francês concorda: “Políticas fortemente igualitárias, no nível da educação infantil, são parte da solução, provavelmente em conjunto com [...] políticas de ação afirmativa nos sistemas de admissão ao ensino superior”. E vai além ao desancar “a hipocrisia escancarada dos discursos meritocráticos contemporâneos”. Ao contrário de “O capital no século XXI”, que tem uma camada acessível a leigos, “Depois de Piketty” é dirigido a economistas. O livro também ignora o Brasil, por insuficiência de dados sobre distribuição da riqueza. Sua leitura, de qualquer maneira, pode contribuir para o debate que se avizinha, sobre a segunda fase da reforma tributária do governo Lula, quando a progressividade tributária estará na mira da proposta do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a ser levada ao Congresso. “Depois de Piketty – A agenda para a economia e a desigualdade” Organizadores: Heather Boushey, J. Bradford Delong e Marshall Steinbaum Editora Estação Liberdade (752 págs., R$ 139,00) Publicado na Folha, em 9 de setembro de 2023.

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